09 setembro 2010







do livro do desejo e outros despojos




*1

paisagem queimada em busca
de renovada água
deformidade curvilínea
buscando outra de sustento
: assim é
a terra que trazemos agarrada aos ossos

braços de céu em ruínas
olhos que constroem casas
habitações breves de outros
abraços e mãos
que desenham no horizonte
a boca toda de palavras
sorvendo o ar e soprando
por sobre nós os poemas: por exemplo,
o amor incha homens nos ventres
desabitados das mulheres e
desata as raízes das árvores
em que o sono é flores que disfarçam o sabor acre do negrume
e ensopam de mel e ordem o caos do sangue
para ao fim da noite
as feridas abrirem em fruto
o coração da manhã


*2
narciso
parado em concêntrico deslumbramento
vai parindo de seus olhos
as águas em que um dia
um outro menino
olhando na paisagem industrial
os novos santos
nos novos altares
se baptizará


*3
por exemplo, agora
esta casa
e a ausência de gestos inúteis
que lhe definam e debruem as janelas

por exemplo, agora
esta casa e o pó não acumulado
sobre cada uma das folhas que
árvore ou pássaro
se encolhem entre uma lombada
e outra
e o dourado dos dias
o negrume das noites
e a solidão que rasga
o tronco absolutamente erecto
de uma palavra
ou sítio.

por exemplo, agora
e agora mesmo
a casa em demanda de memória
o lugar comum da ausência
o vazio nos olhos
o peito em qualquer balcão e
dormindo
no aconchego da puta
o poema sardinheira
todo mãos
todo olhos
todo boca de palavras onde
beirais são ninhos de meninos e
pássaros


*4
quando
sem saber de lei nem terra
nosso senhor emboloreceu
na cal branca do papel
o poeta
finalmente
adormeceu

o silêncio então dividiu
a terra do céu
e ao terceiro dia
o poema nasceu


*5
vou, por este leito de luz
e água
os olhos desabridos e a rebentação
toda no peito
: meus seios inventam duas margens-
-minhas mãos escorrem-te
rio a rio
na clarividência de um
poema

sou,
sem que um único baldio
me sustenha
a respiração forçada de uma
única
e soletrada
palavra


*6
haverá o dia, tu sabes, em que nada do que presumes ser poesia terá já o gosto certo. roídos os ossos da palavra sobrará uma única esboroada pedra e haverá o dia em que, tu sabes, pelas areias nesses desertos desabrocharão como manhãs, límpidas e frescas as orquídeas, as magnólias e os outros perfumes de ser belo. as águas calmas no verde serão apenas idílios e novos nomes ganharão o sabor de serem ditos e reditos como línguas equivocadas no céu de outra boca.
"mas nada disto, absolutamente nada disto, tem que ver com poesia": é mais assim como que o corpo feito de sucessivos despojos
metamórficas páginas
um necessário
e urgente
desejo.









seguindo de perto e celebrando "estranhas criaturas", deriva editores, 2010,de henrique manuel bento fialho (antologia do esquecimento )

7 comentários:

Nuno Cruz disse...

Gostei muito da celebração, do mesmo look do blog, das tuas palavras e das do Henrique. Um abraço.

Anónimo disse...

é bom encontrar-te ao fim destes anos, Blimunda.

Sempre a mesma escrita bela e despudorada.

Gosto do sabor das palavras e do incenso das rezas aqui vividas.
Voltarei.

Anónimo disse...

Cara blimunda,

Poderia indicar o seu e-mail para que me seja possível contactá-la.

Muito obrigado,

Ana

blimunda disse...

blimunda-marta@gmail.com

:) oops, até agora não tinha reparado que não estava no rodapé do blog

blimunda disse...

é ponto, não traço : blimunda.marta@gmail.com

a vida é larga disse...

muito tempo sem te ler...
voltou esse prazer !

bjs!

Micas disse...

Um ano fantástico para ti e todos os teus.
Beijo

ia e vinha e a cada coisa perguntava que nome tinha- sophia

memória