05 abril 2011


LUZ NUM CÉU DE DIAMANTES


quando as ruas das cidades dormitório se esvaziam, os velhos tomam conta das crianças pequeninas e contam-lhes, baixinho, uma história ainda secreta





dizes que em foz côa ao lado das pinturas que o tempo quase esqueceu um pastor escreveu um comboio. contas-me então essa história. como se fosse uma criança pequena
e sentada no teu colo
eu precisasse das tuas palavras para que o mundo
este onde agora mesmo caí
fizesse sentido.

dizes: a história mais indiscreta é a que os olhos
olham e narram. dura mais de três segundos
e pode germinar de uma só palavra. mas essa
sussurras
é secreta. não há nada no mundo mais importante que
assim aninhada entre os teus braços
saber que lá fora
entre os pregões da multidão
porque hoje é sábado
e o dia é de feira
e o chilreio dos pássaros
que vêm comer à tua casa
a vida se dá em episódios tão breves
como estações onde os comboios páram
para recolher mãos
olhos
beijos
e o corpo numa promessa de sul. pastor fosse
também eu te serviria mais de sete
sete anos. pastor fosse
também eu na transumância
e seria fácil
muito fácil deambular nas tuas colinas
desaguar nas pradarias
ou nessas terras quentes onde um vinho novo cresce
e dá em cálices vales profundos
o rubro sabor de teus lábios.

(beberemos desse vinho
como quem faz amor)

belo és
como uma paisagem
toda
recortando-se contra a eternidade.
sim
essa mesmo onde as palavras se escondem
em ocasos de silêncio
e também
laranjas vermelhos impossíveis.
assim
tão translúcidos como diamantes. e os meus
olhos percorrem o teu corpo como se quisesse decorá-lo. é
tão breve a eternidade. tão breve. dizes

olha
subitamente não oiço já o restolhar das árvores
o rumor laborioso das aves
dos frutos amadurecendo em qualquer boca ávida
lá fora
no mundo
onde antes a brisa se abria em folhas largas
e nelas se escrevia
esta história que para ti guardei. dizes. não

não é verdade querido. é apenas o verão
a humidez do verão
evolando-se em espirais de um calor
que trepa pelos ramos
e rebenta numa outra música. por vezes
o silêncio é tão estridente
como gestos e aqui
sob as tuas mãos
a minha pele parece ter ganho essa liquidez:

esse rumor do mundo
desagua agora em mim - ouves? -
palavras secretas
como círculos de água vão
nascendo no meu ventre
e
tu
lenta lentamente
entras em mim.
é importante que saibas que é por isso
que o mundo
lá fora
parece ter desvanecido. mas não.
está apenas à espera
que tu
acabes de contar-me esta história.

que eu penso: como pedra
como árvore ou água
como a asa impossível de ave
eu
existindo sob a viagem
mais longa da tua língua
aprendo:
não há nada mais para saber


apenas o teu nome. esse nome
esse apeadeiro
secreto
do tempo
dentro de mim. depois
até pode voltar a ser primavera. e me te darei
em frutos assim
todos contidos
numa única flor: bocatua
corpoteu
húmidacarnetua: essas flores
também elas de nomes breves.
belas. ilimitadamente floresfrutos.


somos todos tão velhos
quando sabemos
tudo o que importa saber.
e agora olho dessa janela indiscreta
nesse comboio que um qualquer pastor
sonhou
num qualquer dia
( pode ser ontem
hoje
agora mesmo)
num qualquer lugar
(pode ser esse que acontece sob as tuas mãos
quando caio nos teus dias
e deixo que me traces uma paisagem
ou um desejo de paisagem toda
com céu ilimitadamente azul)e digo:
conta-me uma história. para que o mundo
este mesmo onde ainda agora caí
faça sentido.




(chamam-me blimunda. mas o meu nome é marta.
e hoje eu sei. porque nasceu da tua boca. assim
lentamente como quem diz
de uma paisagem com céu
ilimitadamente céu ou de uma natureza
de coisas
que os olhos
dão
quando são janelas
de indiscretos segredos). vejo
tão claramente por dentro
desses segredos que também eu
sou velha
tão velha como os velhos são.




( pastor fosse
também eu te serviria
sete
sete vezes sete anos
para te escrever
desse comboio
todo com um céu
por cima. assim mesmo. céu.




vá, conta-me essa história. pode ser secreta.
dessas que se contam
baixinho
quando as ruas se esvaziam e as cidades
adormecem nos olhos de um pastor.








um começo com palavras do luís.








25 janeiro 2011

coisas amáveis



não é tanto uma dor que se instala
entre os dedos
da manhã fria
os gatos
esperando a alba, o pinheiro na dormente mansidão e eu
que entre as rugas da memória
vou nomeando criaturas
vivas
que me assistem nas razões
- há algo que procura
a água do meu corpo, faz
de conta nos côncavos quentes
e espreita nos meus olhos




09 setembro 2010







do livro do desejo e outros despojos




*1

paisagem queimada em busca
de renovada água
deformidade curvilínea
buscando outra de sustento
: assim é
a terra que trazemos agarrada aos ossos

braços de céu em ruínas
olhos que constroem casas
habitações breves de outros
abraços e mãos
que desenham no horizonte
a boca toda de palavras
sorvendo o ar e soprando
por sobre nós os poemas: por exemplo,
o amor incha homens nos ventres
desabitados das mulheres e
desata as raízes das árvores
em que o sono é flores que disfarçam o sabor acre do negrume
e ensopam de mel e ordem o caos do sangue
para ao fim da noite
as feridas abrirem em fruto
o coração da manhã


*2
narciso
parado em concêntrico deslumbramento
vai parindo de seus olhos
as águas em que um dia
um outro menino
olhando na paisagem industrial
os novos santos
nos novos altares
se baptizará


*3
por exemplo, agora
esta casa
e a ausência de gestos inúteis
que lhe definam e debruem as janelas

por exemplo, agora
esta casa e o pó não acumulado
sobre cada uma das folhas que
árvore ou pássaro
se encolhem entre uma lombada
e outra
e o dourado dos dias
o negrume das noites
e a solidão que rasga
o tronco absolutamente erecto
de uma palavra
ou sítio.

por exemplo, agora
e agora mesmo
a casa em demanda de memória
o lugar comum da ausência
o vazio nos olhos
o peito em qualquer balcão e
dormindo
no aconchego da puta
o poema sardinheira
todo mãos
todo olhos
todo boca de palavras onde
beirais são ninhos de meninos e
pássaros


*4
quando
sem saber de lei nem terra
nosso senhor emboloreceu
na cal branca do papel
o poeta
finalmente
adormeceu

o silêncio então dividiu
a terra do céu
e ao terceiro dia
o poema nasceu


*5
vou, por este leito de luz
e água
os olhos desabridos e a rebentação
toda no peito
: meus seios inventam duas margens-
-minhas mãos escorrem-te
rio a rio
na clarividência de um
poema

sou,
sem que um único baldio
me sustenha
a respiração forçada de uma
única
e soletrada
palavra


*6
haverá o dia, tu sabes, em que nada do que presumes ser poesia terá já o gosto certo. roídos os ossos da palavra sobrará uma única esboroada pedra e haverá o dia em que, tu sabes, pelas areias nesses desertos desabrocharão como manhãs, límpidas e frescas as orquídeas, as magnólias e os outros perfumes de ser belo. as águas calmas no verde serão apenas idílios e novos nomes ganharão o sabor de serem ditos e reditos como línguas equivocadas no céu de outra boca.
"mas nada disto, absolutamente nada disto, tem que ver com poesia": é mais assim como que o corpo feito de sucessivos despojos
metamórficas páginas
um necessário
e urgente
desejo.









seguindo de perto e celebrando "estranhas criaturas", deriva editores, 2010,de henrique manuel bento fialho (antologia do esquecimento )

24 junho 2010







excomunhão em pouquíssimas palavras






Um personagem levantou-se e disse. Isto é uma história. E eu disse. Sim. É uma história. Por isso podem ficar tranquilos nos seus postos. A todos atribuirei os eventos previstos, sem que nada sobrevenha de definitivamente grave. Outro ainda disse. E falamos todos ao mesmo tempo. E eu disse. Seria bom para que ficasse bem claro o desentendimento. Mas será mais eloquente. Para os que crêem nas palavras. Que se entenda o que cada um diz. Entrem devagar. Enquanto um pensa, fala e se move, aguardem os outros a sua vez.
O breve tempo de uma demonstração.

(lídia jorge, o dia dos prodígios)





Há-de nascer na cor dos meus olhos
vou reconhecê-lo. evidentemente vou dizer-lhe palavras capazes de descrever a minha pressa. como se a minha urgência fosse telegráfica. ainda.

1. os telegramas estão fora de moda, baby, sms, sms, é o que está a dar. sempre recebes uma resposta na volta: enviada.
2. enviada
3. enviada
4. será que quero uma resposta. será?




mas então: sabes, hoje as gaivotas gritam sobre a casa, os bicos em esgares salgados invadem-me o sono e há um ar pesado cheirando a maresia. pega-se aos vidros pequenos da janela e cai-me sobre o edredon. estou a dormir. ainda. ou não. e a gata aninhou-se entre mim e a minha solidão. estou a dormir. ainda. ou já não.

despertei ao som de todos estes gritos. uma tontura. outra. e outra ainda. um mal de mar. um mal de mar que invade a boca e deixa um rasto de agonia. todas as ondas aqui me rebentam e vêm sós. cada uma é uma única vaga de palavras em que o meu corpo se quer dizer-te

vaga salgada.
vaga
e salgada.


eu sei. não deveria dizer da solidão. existes tu. e o amor. existe esta gata ruiva. e o amor. existe a minha desmultiplicação e o amor e existe essa memória de dias futuros.

ou não.


é que baby, hoje nasceu-me isto na cor dos meus olhos e reconheci-o. chamo-lhe o que é a que a vida pode ser.

e diz lá, o que é que a vida pode ser para além de ser esta coisa meio pesada por vezes com um cheiro pegajoso. de gritos. de mal de amar. de amar.

Preâmbulo: o roer das noites
Epílogo: o vaivém dos dias.


no entretanto vou escrevendo na pele da perna com a polpa dos dedos. palavras soltas.
eu sei
é uma mania que tenho desde pequena
esta a de escrever com a polpa dos dedos

(estranho os dedos terem polpa. aposto que têm sumo...
têm têm
são as carícias
ah, que lindo)

quando se soltam as palavras o corpo todo
parece ir atrás delas

por exemplo
se eu disser esgares e gritos
se eu disser sons roucos do mar ecoando no meio da noite
é porque
o meu corpo tem
medo

tenho medo do medo que tem caras feias e solta gritos e é rouco e cavo e escuro como no meio da noite. sombras

são só sombras

( andolitá cara de amendoá
um segredo coloredoquem está livre
livre está. ufa!)


ai, contemplo as sobras das minhas mãos: a esquerda, a direita, três ou quatro momentos a que chamo meus. cada um dos dedos, pico-pico, sarapico, quem te deu tamanho bico…

quando era pequena a avó beliscava-me os nós dos dedos em busca de saltos até à frança, cavalos a correr e meninas a aprender. depois o tempo esgotou-se. tudo ficou terrivelmente importante. tão importante que não haveria já mais lengalengas. nem meninas a aprender.

( qual será a mais bonita e onde se irá esconder? )

digo-te: ao despertar nasceu-me nos olhos esta coisa esquisita. e dela sobram-me as mãos. as palavras mãos
as palavras olhos, língua, boca. o sexo húmido de tanta coisa. tan-tan-ta

fluxo. refluxo.



e falamos todos ao mesmo tempo. e todos temos coisas importantes para dizer e todos temos coisas importantes para fazer. eu digo: nada do que tenho para dizer pode ser mais importante que isto: urgente refazer o corpo e reinventar uma história que sobreviva aos ossos róidos pelas noites e à carne que os dias vão mastigando – xiu, por detrás dos olhos é que sobrevivem as palavras importantes, tens de apertar muito muito os olhos e depois, vês, aparecem uma bolinhas de cor umas bolinhas de luz e isso são as palavras, são as palavras mais lindas – todos os dias.

dia após dia. um dia, os cavalos a correr, as meninas a aprender… pico, repico


por exemplo: *seria bom que ficasse bem claro o desentendimento.* seria bom entender que o desentendimento é a único início possível para todas as coisas importantes. e como se a cacafonia invadisse o espaço, inventar palavras lindas lindas e luminosas como bolas de sabão e ventinhos para as levar pelo ar. não.


é importante dizer, sabes,

tenho um espaço entre a carne e o sangue em que equivocada a minha alma vagueia

sabes,

tenho esta alma presa ao branco de qualquer muro
um pássaro de asa negra

escorrendo penas
escorrendo
escorrendo


o negro é a cor das minhas asas

o negro é a cor das minhas penas

o negro é beautiful
morrer sempre cedo
e viver fast como uma bolinha de sabão

não. quero uma bolinha de sbão as meninas a correr os cavalos ...

dar um salto
pode ser até ...

urgente a in-comunicação

re haver a in-capacidadade de dizer as palavras importantes. rolar os olhos para detrás do dia

deixar a língua tocar o céu
(deixa, deixa que seja o da tua)

e cair cair na perfeita perpendicular da palavra vida


ah, mas todos temos outras coisas importantes para dizer

por exemplo, deixa-me dizer-te


olha, dói-me o lado direito do peito numa espécie de dor difusa que se propaga até à boca. ao céu da minha boca. quero dizer, deixa-me assim meio sem ar. e agarro-me com força aos lençóis tentando encontrar um chão. e quando caio é de apneia em apneia
que ...

dá um salto até à frança, os cavalos a correr, as meninas a aprender…

1.um ansiolítico
2.urgente

combater a angústia e dormir num hipnótico abraço,

u k? não é um barbitúrico,

que raio de coisa, um hipnótico não é um barbitúrico

zol
zol piden hiphopnótico, ya

quando dormes assim é quase como morrer não é? é
e até nos sonhos
eu tenho o meu rosto

é como se o sono fosse uma morte com um rosto igual ao meu
ai,
e se for? u k?
se for o meu rosto?
parva...


merda, uma asa está presa nas franjas do sono, outra cai-me ao chão entre a gata ruiva e o tapete de cemporcentolã. cheira-me a maresia e

betty. betty boop é o seu nome
da gata. ruiva.

tonta, olha lá, não sentes que a gente cai do sono como quem cresce. ou, primeiro dormíamos e a história era sem começo

é. que o corpo dormente não pesa.

depois de repente o dia irrompe com
violência.
essa luz branca – o corpo recorda-se.

e o relógio biológico em que o corpo dá as horas:

dling-dlong: bom dia

cabeça, tronco e membros

divina trindade o corpo indivisível. vá, toca a acordar

e a alma,
é importante saber que a alma está presa nessa excomunhão branca.

a excomunhão branca



as gentes gramam dela

U k?

as gentes, as gentes gramam da alma
e da branca

sim, mas e da excomunhão?
isso ñ sei


porra, outra vez

o cio-ciar das gentes. passo a passo, fila a fila, gritam os silêncios importantes. e todos pensam e todos dizem e todos gritam tudo ao mesmo tempo. como as gaivotas que sobrevoam a minha sala. quem vos deu tamanho bico?

prontos, aqui me nasce o corpo. inevitavelmente. nem consigo reinventá-lo. nem tão pouco rescrever a sua história. eis-me.
eis-me.

e todavia… quase me sinto bem
assim
sem ter de …


era uma vez?

não. era uma vez sete vezes setenta vezes. o peso da eternidade. o peso todo. enquanto me dura esta vida, pesa-me a eternidade. essa coisa feita de coisas importantes para fazer e coisas importantes para dizer. essa coisa de um tudo nada tão pegajoso como a maresia. irrompe na sala. a gata ruiva mia. o sofá vermelho desagua sob os meus olhos. red velvet. engraçado.

1.há marcas nossas no sofá, sabias, marcas que revelam o peso dos nossos corpos. redondas marcas redondas brancas.
do peso todo. contra o peso da eternidade. eu. tu. o sofá vermelho.

2.Não quero dizer nada de verdadeiramente importante.
Evidente: não aprendi a dizer nada
De verdadeiramente
Importante


U k?
Enviada


( supõe * que o início não começa * e eu digo tenho uma alma de asas negras toda agasalhada de ossos em que cada um ocupa o lugar que na verdade não me pertence.

sou uma babel de nomes uma
babel de palavras uma babel de importantes palavras. evidentemente não aprendi. porra.

pico-pico, sarapico, quem te deu tamanho bico
subo-me montes desço em vales. a pique.
a memória. a minha avó morreu. talvez a minha memória seja esta coisa vida pegajosa. e o corpo guarde cheiros que se pegam às mãos. a minha avó morreu e levou com ela os cavalos a correr as meninas a aprender. e o corpo guarde lugares. guarde inícios. secretas danações do maravilhoso. hummmm, pérolas, pérolas nacaradas e
tão macias e cheirando a mar amar

como escapar à importância da eternidade. como. quebrar a longa cadeia que me faz escorrer nestes muros brancos imaculadamente brancos duas asas negras. ave. quero

supõe,
baby, que agora mesmo vens, abres-me o corpo e me acaricias nesse mesmo lugar onde a minha alma subitamente se desfaz em pó.

supõe que tudo o que é importante se resume a saber que não há verdadeiramente prodígios. e que não há realmente forma de escapar à danação. que tudo é tão simplesmente esta história que nem sequer tem início. um homem, uma mulher, o espaço do começo devassado entre eles. o equívoco homem. o equívoco mulher. a troca. ela ele - ele ela. supõe que esta é a história que vale a pena ver por detrás dos olhos
como pontinhos luminosos

supõe que sou eu a montar-te. eu que te abro as pernas e à escassez de bocas que o teu corpo revela entro em ti ainda assim. a boca boca, a boca anûs. de cada um dos meus dedos escorre-te um grito.
um que valha mesmo a pena gritar

e pico-pico, sarapico,



supõe que aí entre as tuas pernas, na boca inventada do teu corpo, me deposito. eu-pérola. a tua eterna branca danação. então



este é o início que não começa. todo o início de toda a história. o paradoxo contagia-nos de verdade.)


a maresia deita-se no sofá. agora afunda-se no red velvet. sangue aveludado. os gritos das gaivotas e um início.

porra, o dia não é de prodígios.










ia e vinha e a cada coisa perguntava que nome tinha- sophia

memória