24 junho 2010







excomunhão em pouquíssimas palavras






Um personagem levantou-se e disse. Isto é uma história. E eu disse. Sim. É uma história. Por isso podem ficar tranquilos nos seus postos. A todos atribuirei os eventos previstos, sem que nada sobrevenha de definitivamente grave. Outro ainda disse. E falamos todos ao mesmo tempo. E eu disse. Seria bom para que ficasse bem claro o desentendimento. Mas será mais eloquente. Para os que crêem nas palavras. Que se entenda o que cada um diz. Entrem devagar. Enquanto um pensa, fala e se move, aguardem os outros a sua vez.
O breve tempo de uma demonstração.

(lídia jorge, o dia dos prodígios)





Há-de nascer na cor dos meus olhos
vou reconhecê-lo. evidentemente vou dizer-lhe palavras capazes de descrever a minha pressa. como se a minha urgência fosse telegráfica. ainda.

1. os telegramas estão fora de moda, baby, sms, sms, é o que está a dar. sempre recebes uma resposta na volta: enviada.
2. enviada
3. enviada
4. será que quero uma resposta. será?




mas então: sabes, hoje as gaivotas gritam sobre a casa, os bicos em esgares salgados invadem-me o sono e há um ar pesado cheirando a maresia. pega-se aos vidros pequenos da janela e cai-me sobre o edredon. estou a dormir. ainda. ou não. e a gata aninhou-se entre mim e a minha solidão. estou a dormir. ainda. ou já não.

despertei ao som de todos estes gritos. uma tontura. outra. e outra ainda. um mal de mar. um mal de mar que invade a boca e deixa um rasto de agonia. todas as ondas aqui me rebentam e vêm sós. cada uma é uma única vaga de palavras em que o meu corpo se quer dizer-te

vaga salgada.
vaga
e salgada.


eu sei. não deveria dizer da solidão. existes tu. e o amor. existe esta gata ruiva. e o amor. existe a minha desmultiplicação e o amor e existe essa memória de dias futuros.

ou não.


é que baby, hoje nasceu-me isto na cor dos meus olhos e reconheci-o. chamo-lhe o que é a que a vida pode ser.

e diz lá, o que é que a vida pode ser para além de ser esta coisa meio pesada por vezes com um cheiro pegajoso. de gritos. de mal de amar. de amar.

Preâmbulo: o roer das noites
Epílogo: o vaivém dos dias.


no entretanto vou escrevendo na pele da perna com a polpa dos dedos. palavras soltas.
eu sei
é uma mania que tenho desde pequena
esta a de escrever com a polpa dos dedos

(estranho os dedos terem polpa. aposto que têm sumo...
têm têm
são as carícias
ah, que lindo)

quando se soltam as palavras o corpo todo
parece ir atrás delas

por exemplo
se eu disser esgares e gritos
se eu disser sons roucos do mar ecoando no meio da noite
é porque
o meu corpo tem
medo

tenho medo do medo que tem caras feias e solta gritos e é rouco e cavo e escuro como no meio da noite. sombras

são só sombras

( andolitá cara de amendoá
um segredo coloredoquem está livre
livre está. ufa!)


ai, contemplo as sobras das minhas mãos: a esquerda, a direita, três ou quatro momentos a que chamo meus. cada um dos dedos, pico-pico, sarapico, quem te deu tamanho bico…

quando era pequena a avó beliscava-me os nós dos dedos em busca de saltos até à frança, cavalos a correr e meninas a aprender. depois o tempo esgotou-se. tudo ficou terrivelmente importante. tão importante que não haveria já mais lengalengas. nem meninas a aprender.

( qual será a mais bonita e onde se irá esconder? )

digo-te: ao despertar nasceu-me nos olhos esta coisa esquisita. e dela sobram-me as mãos. as palavras mãos
as palavras olhos, língua, boca. o sexo húmido de tanta coisa. tan-tan-ta

fluxo. refluxo.



e falamos todos ao mesmo tempo. e todos temos coisas importantes para dizer e todos temos coisas importantes para fazer. eu digo: nada do que tenho para dizer pode ser mais importante que isto: urgente refazer o corpo e reinventar uma história que sobreviva aos ossos róidos pelas noites e à carne que os dias vão mastigando – xiu, por detrás dos olhos é que sobrevivem as palavras importantes, tens de apertar muito muito os olhos e depois, vês, aparecem uma bolinhas de cor umas bolinhas de luz e isso são as palavras, são as palavras mais lindas – todos os dias.

dia após dia. um dia, os cavalos a correr, as meninas a aprender… pico, repico


por exemplo: *seria bom que ficasse bem claro o desentendimento.* seria bom entender que o desentendimento é a único início possível para todas as coisas importantes. e como se a cacafonia invadisse o espaço, inventar palavras lindas lindas e luminosas como bolas de sabão e ventinhos para as levar pelo ar. não.


é importante dizer, sabes,

tenho um espaço entre a carne e o sangue em que equivocada a minha alma vagueia

sabes,

tenho esta alma presa ao branco de qualquer muro
um pássaro de asa negra

escorrendo penas
escorrendo
escorrendo


o negro é a cor das minhas asas

o negro é a cor das minhas penas

o negro é beautiful
morrer sempre cedo
e viver fast como uma bolinha de sabão

não. quero uma bolinha de sbão as meninas a correr os cavalos ...

dar um salto
pode ser até ...

urgente a in-comunicação

re haver a in-capacidadade de dizer as palavras importantes. rolar os olhos para detrás do dia

deixar a língua tocar o céu
(deixa, deixa que seja o da tua)

e cair cair na perfeita perpendicular da palavra vida


ah, mas todos temos outras coisas importantes para dizer

por exemplo, deixa-me dizer-te


olha, dói-me o lado direito do peito numa espécie de dor difusa que se propaga até à boca. ao céu da minha boca. quero dizer, deixa-me assim meio sem ar. e agarro-me com força aos lençóis tentando encontrar um chão. e quando caio é de apneia em apneia
que ...

dá um salto até à frança, os cavalos a correr, as meninas a aprender…

1.um ansiolítico
2.urgente

combater a angústia e dormir num hipnótico abraço,

u k? não é um barbitúrico,

que raio de coisa, um hipnótico não é um barbitúrico

zol
zol piden hiphopnótico, ya

quando dormes assim é quase como morrer não é? é
e até nos sonhos
eu tenho o meu rosto

é como se o sono fosse uma morte com um rosto igual ao meu
ai,
e se for? u k?
se for o meu rosto?
parva...


merda, uma asa está presa nas franjas do sono, outra cai-me ao chão entre a gata ruiva e o tapete de cemporcentolã. cheira-me a maresia e

betty. betty boop é o seu nome
da gata. ruiva.

tonta, olha lá, não sentes que a gente cai do sono como quem cresce. ou, primeiro dormíamos e a história era sem começo

é. que o corpo dormente não pesa.

depois de repente o dia irrompe com
violência.
essa luz branca – o corpo recorda-se.

e o relógio biológico em que o corpo dá as horas:

dling-dlong: bom dia

cabeça, tronco e membros

divina trindade o corpo indivisível. vá, toca a acordar

e a alma,
é importante saber que a alma está presa nessa excomunhão branca.

a excomunhão branca



as gentes gramam dela

U k?

as gentes, as gentes gramam da alma
e da branca

sim, mas e da excomunhão?
isso ñ sei


porra, outra vez

o cio-ciar das gentes. passo a passo, fila a fila, gritam os silêncios importantes. e todos pensam e todos dizem e todos gritam tudo ao mesmo tempo. como as gaivotas que sobrevoam a minha sala. quem vos deu tamanho bico?

prontos, aqui me nasce o corpo. inevitavelmente. nem consigo reinventá-lo. nem tão pouco rescrever a sua história. eis-me.
eis-me.

e todavia… quase me sinto bem
assim
sem ter de …


era uma vez?

não. era uma vez sete vezes setenta vezes. o peso da eternidade. o peso todo. enquanto me dura esta vida, pesa-me a eternidade. essa coisa feita de coisas importantes para fazer e coisas importantes para dizer. essa coisa de um tudo nada tão pegajoso como a maresia. irrompe na sala. a gata ruiva mia. o sofá vermelho desagua sob os meus olhos. red velvet. engraçado.

1.há marcas nossas no sofá, sabias, marcas que revelam o peso dos nossos corpos. redondas marcas redondas brancas.
do peso todo. contra o peso da eternidade. eu. tu. o sofá vermelho.

2.Não quero dizer nada de verdadeiramente importante.
Evidente: não aprendi a dizer nada
De verdadeiramente
Importante


U k?
Enviada


( supõe * que o início não começa * e eu digo tenho uma alma de asas negras toda agasalhada de ossos em que cada um ocupa o lugar que na verdade não me pertence.

sou uma babel de nomes uma
babel de palavras uma babel de importantes palavras. evidentemente não aprendi. porra.

pico-pico, sarapico, quem te deu tamanho bico
subo-me montes desço em vales. a pique.
a memória. a minha avó morreu. talvez a minha memória seja esta coisa vida pegajosa. e o corpo guarde cheiros que se pegam às mãos. a minha avó morreu e levou com ela os cavalos a correr as meninas a aprender. e o corpo guarde lugares. guarde inícios. secretas danações do maravilhoso. hummmm, pérolas, pérolas nacaradas e
tão macias e cheirando a mar amar

como escapar à importância da eternidade. como. quebrar a longa cadeia que me faz escorrer nestes muros brancos imaculadamente brancos duas asas negras. ave. quero

supõe,
baby, que agora mesmo vens, abres-me o corpo e me acaricias nesse mesmo lugar onde a minha alma subitamente se desfaz em pó.

supõe que tudo o que é importante se resume a saber que não há verdadeiramente prodígios. e que não há realmente forma de escapar à danação. que tudo é tão simplesmente esta história que nem sequer tem início. um homem, uma mulher, o espaço do começo devassado entre eles. o equívoco homem. o equívoco mulher. a troca. ela ele - ele ela. supõe que esta é a história que vale a pena ver por detrás dos olhos
como pontinhos luminosos

supõe que sou eu a montar-te. eu que te abro as pernas e à escassez de bocas que o teu corpo revela entro em ti ainda assim. a boca boca, a boca anûs. de cada um dos meus dedos escorre-te um grito.
um que valha mesmo a pena gritar

e pico-pico, sarapico,



supõe que aí entre as tuas pernas, na boca inventada do teu corpo, me deposito. eu-pérola. a tua eterna branca danação. então



este é o início que não começa. todo o início de toda a história. o paradoxo contagia-nos de verdade.)


a maresia deita-se no sofá. agora afunda-se no red velvet. sangue aveludado. os gritos das gaivotas e um início.

porra, o dia não é de prodígios.










ia e vinha e a cada coisa perguntava que nome tinha- sophia

memória