20 outubro 2007






tinha mãos de jardineiro quando tratava de amor


















amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso e construo-me esta madrugada letra a letra. das palavras que para ti guardo não sei mesmo se qualquer uma delas faz sentido. não importa. há sempre qualquer outra coisa que espreita para nos levar.
rói nas entranhas um fogo assim tão silente. não saber já dizer. não encontrar a palavra mais justa para dizer - e nos olhos
que baixo
na tua presença
há já outra outra cor. outra cor da minha dor.
não é a morte mais silente
que o dia sem ti
nem a noite imponente deslumbre maior
que o céu que dorme nos teus braços
nem o mar véu mais puro
que a tua pele nua



desculpa, mas tenho de te contar. hoje morreu a lúcia. a velha viúva da aldeia (e eu pensei em mim, pensei em ti, assim nesta distância que nunca acaba, nesta morte em vida) quando amanheceu, o corpo e o seu lugar ainda quente cheio das suas mãos, do seu cheiro de mulher velha, dos olhos que alongava sentada na cadeirinha à beira da janela, quando amanheceu, digo, vieram de lá de trás da serra os sobrinhos. trouxeram muitas outra mãos: vestiram-na, deitaram-na no caixão, o terço de latão e perolazinhas fingidas em duas voltas em redor das mãos cruzadas, os sapatos só calçados nas pontinhas dos pés, não cabem, são sapatos de há muitos anos. o cabelos com aquela mise-en-plis que sempre lhe conheci. os caracolinhos muitos fininhos dos rolos, a laca a cheirar a dias de festa. parecia uma menina.
depois, levaram-na para a capela da vila. e quando voltaram, já depois de enterrada, entraram-lhe em casa, com pressa, a sobrinha a perguntar, onde é o contentor do lixo mais perto, e toda tarde foi um vaivém de carregos.

um fartão de coisas boas no lixo, dizem aquelas
outras velhas sentadas no muro à beira da estrada.

meio encolhidas. meio encolhidas já de saudade. a saudade
pode
ser uma velhice encarquilhada.
o tempo quase arrependido. pode.


depois, foram embora. sobra um papel colado na janelita da lúcia, vende-se, em letras mal desenhadas.
mais à frente, toda a sua vida despejada na rua.os olhos
de toda a gente a desvelarem
os segredos. a mobília espanhola, negra com florinhas. comprada em badajoz. como é linda
meu amor, como é linda. as gavetas dos anos

cheias desses bilhetinhos
que com a letra toda inclinada para o lado do coração
escrevia: uma só

pergunta:
então o amor é isto? os pratinhos de vidro colorido
em borbotões nas beiras
escaqueirados num caleidoscópio de dias.
os dias de festa
os dias de luto. quando morreu a mãe
quando o tempo apagou os natais
quando as páscoas viram
os seus dias encurtarem e lhe levaram
o tempo de homem. sentada à janela
como quem espera: ha pasado un caballero
- quién sabe por qué pasó!-
y se ha llevado la plaza
con su torre y su balcón,
con su balcón y su dama,
su dama y su blanca flor: os versos decorados
e inscritos num bilhetinho,
como são lindos, meu amor, como são
lindos.
agora já não. manchados com a gordura
de fritos
o lixo dos outros a manchar o antonio
machado. o lixo dos dias
a manchar o seu homem
a sua torre
a sua branca flor. a roupa de enxoval
ainda por estrear,

devassada na boca dos cães, a baba
dos cães como sangue de parto,
a baba dos cães como suor de corpos que ali não
se deitaram. as rendas
os intermináveis biquinhos de renda
para arrematar as toalhas. os retalhos.

a vida toda em retalhos coloridos. uns tão escuros
outra os gritos coloridos
do amor em pé, espreitando quando
ela lavava os cabelos. nunca cortes
esse cabelo, lúcia, nunca,
a arca de pés
e cantos em latão amarelo. as roupas de casa. a casa
toda em roupas. a casa toda em roupas
macias
cheirando a alfazema e maçãs verdes.

este é o cheiro para a nossa filha, diz a lúcia,
mas a filha não vem. nem ela nem ninguém.

o psiché meio manco:
o rapaz dos correios de nelas

no sépia desbotado da moldura
do fotógrafo de cidade
- há tantos tantos demasiados anos -
o vestido domingueiro e o serviço de copos
comprado às prestações ao vendedor de enciclopédias

esvoaçam os lençóis da noite em que se deitaram juntos
o bordado no cabeção: amizade
um - a - todo intrincado de florinhas
e folhas. a primavera do amor
na primavera do corpo.

um homem de uma mulher pode ocupar toda a casa
sem nunca o saber. em todas as coisas que uma casa
pode ter
uma mulher pode refazer a cada dia
o seu homem
e deitá-lo
sentá-lo
aninhá-lo entre as sertãs e os pratos da loiça de viana
entre as linhas de coser e
as cortininhas de chita que o tempo
embolorece. há um homem
a dormir nesta cama
muito depois de o homem
partir.

senhores, nem a roupa quiseram, dizem as velhas sentadas
encolhidas

encolhidas. as palavras cheias de rugas
os olhos aguados. cataratas do tempo
desaguando em espanto. senhores,
nem a roupa do corpo quiseram guardar.

baixo os olhos. quando a minha morte vier
que venha escandalosa
repentina
e me roube a memória dessa frase
toda inclinada
para o lado do coração: então o amor
é isto?

não quero saber nem mais uma palavra.
nem mais uma.

que é feito do rapaz dos correios em nelas
dos beijos de olhos

dos sorrisos de mãos
e do amor escorrendo pelas pernas: quando passou
os pirinéus
o amor era essa palavra
roubada nas escadas
do prédio
o ventre espantado
um calor crescente e a água da boca.
a mãe dormia e embalava nos braços
uma menina. ainda ela
ainda ele
e um amor todo inclinado para o lado do coração. é sempre daqui que nascemos
para o mundo
sempre os olhos abertos inúteis
quase cegos

e é sempre aqui que nos morremos
com os sons a deslizarem lentamente da boca
uma casa aos pés guardando toda a existência
o amor que se fez
o amor que nos viajou por dentro do corpo.

é sempre assim que nos morremos:
olhos
abertos
quase inúteis: cegos somos já
a todo o mundo. quando vier a minha morte
quero-me assim
muda olhos vazados
escondendo entre os ossos esse mistério
do lado coração e
todos os momentos em que me viajei por dentro. e de ti.

o silêncio todo do mundo
entre as mãos
cruzadas no peito
um terço de perolazinhas de fingir
o latão da nossa senhora de fátima
os sapatos na pontinha dos pés
e uma roupa por estrear: assim quero também eu
receber a minha morte: menina
de olhos cegos
e a pureza de um coração
inclinado no corpo
para o lado em que o mundo
não venha acordar-me.: então
o amor
é isto?


(talvez muito de ti viva em mim
assim nesta clausura em que me
defino quando fecho os olhos e
um cheiro a mofo me inebria

chiu...)


o amor morte
branca
de perolazinhas fingidas
latão de nossa senhora
a sossegar duas mãos cruzadas
no lado mais inclinado.




título do capinador de palavras, chico buarque, o al berto sempre em flor, as palavras de lilazes e a foto do jorge

19 outubro 2007

obladi oblada

obsession




isto não está tudo seguro e nunca se sabe quando nos vão mandar parar, a solidão é o pior, um homem fala com as árvores, o outro ou está a dormir, ou a comer, ou a assobiar, está um gajo sempre sem dizer nada, e eu que gosto tanto de ouvir canto gregoriano no silêncio dos claustros, música celestial claro...

dizias. e ias debicando um vermelho de maçã enquanto as palavras escorriam
silenciosas
dos teus olhos. dente
a dente te percebia a lonjura.
o silêncio de claustros invadidos pela multidão de vozes. o céu todo já não se abre
em azuis. e branco.

tão branca a eternidade. tão insuportavelmente branca. como uma faca afiada entre
as costelas. não. aí no lugar mesmo
em que o sexo floresce e tenta resgatar o corpo ao tempo. esse
bicho esfaimado. nunca
saberei que mais querias dizer. a tua carne dissolveu-se por entre páginas e páginas
e os olhos
foram com ela. sobrou-me esta memória de harpa
este gosto de ti
assim por debaixo da língua. e uma maçã oxidada. escura carne de quem já esqueceu dentes. saliva. ou de como a língua
explora a doçura.

se ainda aqui quisesses regressar poderia até incendiar esta manhã
e deitar-me contigo ao sol. uma redonda e rubra maçã no meu ventre. encantaria a noite
e poderia até dizer-te
anda cá, não te dissolvas no sal dos teus olhos.
nos fertilizaremos em corpos de mar
e nos vagaremos dessas lágrimas. não há água mais doce
que as de nossas bocas. bebo-te
dos olhos. transmuto-te em rio. para que me desças. me desças
entre um seio e outro.

aqui estou ainda. espero por ti. não temas. é que estas páginas
e páginas que me sobraram entre os lábios
ciciam ainda estes versos
estas águas livres e insubmissas com que te fazes saliva em mim
ácida saliva de maçã. vermelha saliva. um gosto
mesmo
a sangue. sangue.

dai-me uma jovem mulher
com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue.
com ela encantarei a noite.
dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
seus ombros beijarei, a pedra pequena do sorriso de um momento.
mulher quase incriada, mas com a gravidade de dois seios,
com o peso lúbrico e triste da boca.
seus ombros beijarei. cantar? longamente cantar,
uma mulher com quem beber e morrer

dizias
depois um de nós pairando assim triste
sobre uma cidade cheia de ruídos e pássaros cagando ao sol
acabaria por desvendar os seus segredos. incriar um sorriso. desnascer
em arbustos ardendo na noite. será fácil
abrirmo-nos nessas memórias. futuros. e dizer uma verdade bem maior que este vazio.

recriar nesse intervalo quente dos meus seios
uma morada de outro silêncio. completamente outro silêncio. a carne tem
um poder de feitiço. por vezes.
e os dias dilatam-se. são assim como
vulvas macias. e lábios portas para a dimensão interior. os significados ocultos
da mistura do sangue com sangue. da pele em pele apertada. aconchegada
em mim jaz essa memória. os dias em que o silêncio se faz de
cânticos a duas bocas e uma segunda pele.

o meu sexo não nega o sabor do teu. a minha carne não nega o frio
da tua. aquecerei nas mãos esse tormento de pele que é o teu. para te perguntar, sabes
ainda reconhecer o meu caminho. regressa.

choras uma
mulher nua sob as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco,transportadora da morte e da alegria.
e dizes
dai-me uma mulher tão nova como a resina e o cheiro da terra.
com uma flecha em meu flanco, cantarei.
e enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo, suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.

beberei sua boca, para depois cantar a morte e a alegria da morte
. e eu oiço-te
assim, por dentro dos olhos. e como quem entende digo-te morreremos sim.
embriagados dessa morte alegre. o ventre escarlate todo em vinho de sangue.
numa videira de retorcidos
amplexos. explodindo mãos em folhas largas. e seios. bagos húmidos em cachos.
entre os dentes. entre os dentes.

amanhece. aqui. onde estou. sozinha e repleta
de imagens onde antes havia apenas o teu silêncio. o teu.
remexo mais profundamente o lugar onde a carne guarda a tua memória. e vejo-te
ali
deitado ao sol
na escadaria larga e branca
essa mesmo sim
cantando esse silêncio novo quando
sem muitos gestos dizias,

talvez consiga explicar melhor
não é bem a pele
mas a carne debaixo
o sangue e os corpúsculos da dor
não bem a dor mas o vazio
que fica
quando a dor parece que passou
, sabes? dizias como se toda a importância do mundo
rolasse sob a tua língua e se refizesse em saliva do teu próprio corpo. sei.
os mesmos corpúsculos se enrugam no meu corpo. os mesmos.

e
também eu ando para aqui a escorrer este vazio no sangue. um vazio
em que se inscrevem estes corpúsculos verdana size normal. e é porque não nos deixam
espaço para aquele outro silêncio habitado de vermelho e maciez. em que as mãos
desfloram o ventre
húmido e quente da palavra. amor. a(morte). amar-te. quantas
foram as vezes em que veias adentro julgaste
atirar no corpo a confusão de letras e letras. formaríamos esses novos
vocábulos se ao menos
os claustros se inundassem de celeste. azul.
não. deitados
lado a lado
o meu rosto no teu rosto assoma por entre os teus olhos
e há uma liquidez estranha. lágrimas de ossos e dias. estendo-te
as mãos. o consolo possível. basta?

... quem habita o silêncio dos dias? esse intervalo entre a placidez de lagartear ao sol
buscando entre as nuvens esparsas uma forma
que nos possa conter. volatizar a dor. ou o vazio onde a dor se inscreveu e agora
cresce nesse gosto acentuado a dois tempos. num momento
existimos nós
deitados ao sol na escadaria da casa grande
e noutro distinto momento esse vazio de nós. não bem o vazio
mas o momento que antecede o vazio
quando ainda não percebemos
que era melhor
a pele rasgada a carne viva
o movimento de roda
dentada engrenando
no que talvez seja
a alma ou os gânglios do sistema nervoso
autónomo
, dizes-me
como se te olhasses assim mesmo, nuvem, viajando através das estradas do céu.
dissolvendo-te na origem das coisas. acho mesmo que nem saberias dizer-me
porque choras agora. mas
o meu colo está aqui. dois seios ainda em intervalos de quente
para te receber. encosta a cabeça. descansa esse insuportável cântico de silêncio igual
e vazio de carne deslizando já para a brancura do tempo. a tua alma sabes
talvez se aninhe. talvez insista ainda nesta palavra redonda.

eu sei. talvez já não haja consolo possível em dois seios inventados
numa qualquer manhã
de um qualquer dia.
a brancura do tempo escorre-te entre os dedos. eu sei. como se de água insubmissa
se tratasse. e não te consolam já meus seios. não. não há
sustentamento que te console.

quando o fruto empolga um instante a eternidade inteira,
eu estou no fruto como sol e desfeita pedra,
e tu és o silêncio, a cerrada matriz de sumo e vivo gosto.

– e as aves morrem para nós,
os luminosos cálices das nuvens florescem, a resina tinge a estrela,
o aroma distancia o barro vermelho da manhã.

e estás em mim como a flor na ideia e o livro no espaço triste.
se te apreendessem minhas mãos,
forma do vento na cevada pura, de ti viriam cheias minhas mãos sem nada.

e
talvez consiga explicar melhor
se ficar parado
aqui,
pensarás

porque habitas longe já. nessa outra casa
em que as paredes altas se caiam de bolor
e os dias vão escrevendo autónomos
um só
instante. um só.

passou.


e eu
olhando a distância entre os degraus onde estás tu
e os degraus de onde as minhas pernas mais acima te anelam
refaço essa casa grande
entro-lhe pela porta
e chamo-te
vem. tenho as mãos cheias de nada. reviverás assim
no empolgamento de um fruto
entre dentes e língua
eternidade e beijos
tempo e espaço entre o tempo. este silêncio é a urgente reinvenção do som. sopraremos
o vento. pairaremos como aves
debicando no sol
o vermelho de maçã e
deslizando nas nuvens
nos deitaremos nessa água fofa.
essa cama de verdadeiros amantes. o céu abrirá
nas páginas deste livro a ideia de mim
a ideia de ti
e

num terceiro dia de pomares em que a vista voa por entre os cheiros
e se renomeia. são
as polpas rubras dos meus lábios
esmagando-se no
gosto ácido a maçãs da tua saliva
a chamar-te. dar-te-ei todos os frutos maduros
do meu corpo.

ou preferes definitivamente os eucaliptos por causa do cheiro? é que neste pomar
onde agora me escrevo
recordo que dizias de maçãs de rosas
de lírios
de pinheiros em mansidão. e casa. alicerce escavado cravado em mim
raiz nova em profusão de ramos como mãos
o sexo quente entre folhas e folhas
e esse cheiro a resina. a casa como ninho de âmbar
de todos os pássaros. asas de translúcidas gemas. asas.

voarás. regressa.


na sombra desta casa ainda a sombra de ti. ecos me trazem e me levam.
estremeço. refaço-me e oiço-te.

tua voz canta o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias
com o lento desejo do teu corpo.
beijarei em ti a vida enorme,
e em cada espasmo eu morrerei contigo




cantarei também eu
se quiseres. o espasmo. a morte. esse desejo lento de voz em teu corpo.
essa silenciosa água
crescendo livre como rio. e à tua beira
desnudarei este fruto.
















desmond morris, obsession. josé antunes ribeiro, ( para nunca te esquecer ) o difícil comércio das palavras.
blimunda em metamórfica deambulância por entre o herberto helder e a segunda pele do luis
ia e vinha e a cada coisa perguntava que nome tinha- sophia

memória