18 setembro 2007

hip hop'tenusa

( prólogo

Um lugar. Onde nenhum. Um tempo para tentar ver. Tentar dizer. Quão pequeno. Quão vasto. Se não ilimitado com que limites. Donde o obscuro. Agora não. Agora que se sabe mais. Agora que não se sabe mais. Sabe-se somente que saída não há. Sem se saber porque se sabe somente que saída não há. Somente entrada. E daí um outro. Um outro lugar onde nenhum. Donde outrora dali regresso nenhum. Não. Lugar nenhum a não ser só um. Nenhum lugar a não ser só um onde lugar nenhum. Donde nunca outrora uma entrada. Dalgum modo uma entrada. Sem um só além. Dali donde não há ali. Por lá onde por lá não há. Ali sem de lá nem dali nem sequer por onde.)



Um dia, um homem que perguntava coisas, perguntou-me do medo.

estávamos sentados numa sala à beira de um rio. era jantar e era quase noite. noite mesmo não apenas aquela luz morredoura de fim de dia. lá fora descobrimos que olhando dentro na transparência do lugar esse mesmo lugar era nenhures. assim mesmo encontrado como quem segue um mapa e se esquece. quando assim é vamos sempre dar a algures um sítio quase inventado roubado. tu dizias do vinho da comida da noite do medo. não do medo não dizias. do mal de viver. do mal viver. não fales de mim. não fales para mim. eu sou o impossível limite
de mim mesmo. e em mim mesmo me esgoto. do medo pensava eu não fales de mim ao medo pensava eu enquanto a pergunta se desenhava muito direitinha entre a salada de quejo fetta e o meio redondo das rodelas de ananás. juro que era ácido. o medo. eu que não sabia escrever-te dizia com toda importância que uma refeição com perguntas importantes impunha:
apanhada numa teia. na urgência toda da nudez. a nudez. na urgência da nudez. sou.
um animal da urgência.(porra, estar aqui às seis da manhã e desfiar este rosário. em cada uma das palavras cada uma das minhas contas. arranco-as ao que de mais cru há no meu existir para me lavar deste mal. deste mal. le mal de vivre. o mal de morrer a cada hora. de morrer-me. desfio o rosário como quem recita a oração do deve-haver. deve haver qualquer coisa que me escapa entre dedos. por exemplo:
quando eu era Mariana tinha medo das borboletas.
lia. e eu que não sou mariana e muito menos maria ana não tenho medo de borboletas. há até aquela forma de existir em borboleta que é muito mulher. uma ephemera. daquelas cujas asas se crescem alindam só para voar entre o nascer e o morrer. do dia. no sexo de um homem. entre as pernas fechadas abertas de um homem. foda-se se há.)
por vezes roemos assim uma espécie de vazio no estomâgo e meu querido
não há salada de ananás e fetta
não há vinho maduro nem pão
pão que possam bastar. roídas tripas. roídos ossos
roídas carnes. enclausurados por dentro
de palavras por dizer. amor que se desfaz em lençóis
mortalhas
e essa é a verdadeira
última ceia. comemos do pão
bebemos do vinho
e sobra-nos o medo. a existência num trago de amargor
um homem
uma mulher
e quanto basta para silenciar a palavra: ...

sirvo-me deste casulo para reconstruir um corpo. nomeá-lo. invocar para ele o esqueleto de uma emoção. de uma vontade. de um ser. assim mesmo efémero. tão efémero quanto dizer: nome: marta. o que é uma coisa
verdadeiramente estúpida porque se sou
marta
existo. muito mais que efémera. tu sabes. é que costumo recolher-te
e afogar-te aqui entre os seios e dizer-te
mansamente
toma lá. duas asas para te aquecerem. não, vão durar, vão
durar mais que um amor
fodido roubado ao teu tempo (medo que o tempo
seja o verdadeiro mal
e encaneça nas frontes
gritando: passou! já passou!)



é. o que é que sou quando sou gaja? sou uma butterfly. essa fugidia forma de ser. esborrato-me ao toque. vês? as minhas asas são de pó, de pó. um só toque e o meu corpo escorre-te entre os dedos. por isso, cancela, sim cancela a minha subscrição. eu não quero a ressurreição em cada dia. prefiro morrer mesmo. no fim. do dia. e entrar nessa estranha casa toda feita de fio de baba e criar outra. porque porra hei-de alongar olhos e esperar, esperar. merda, ter estas asas todas esburacadas em forma de olhos e esperar. esperar para ver. essa é a subscrição da viagem para um corpo em lugar nenhures. cancela.

que palavrinha adorável nenhures. ou algures. soam-me hoje a palavras estrangeiras. podia ser assim: nen'h ures. ou al'gures. que lindo.
( al'gures será esse deserto
que se levanta entre os teus braços-
aí o meu corpo
morrerá:
e de nen'h ures um coro de mulheres
lavando a minha mortalha
me embalará. caminharei.
os pés nus nas areias quentes da memória.
para te entregar a minha alma. )

o lugar
mais antigo é esse onde morremos.


porque eu nunca estive cá. penso até que quando nasci quem me pariu foi assim uma enorme roda dentada. começou por dentar-me os pés. depois foi subindo. o ventre todo estraçalhado em metades de mim. arrancou-me o coração do lugar dele e deixou-me assim
uma espécie de músculo insone e roxo
que mais não faz que bombar sangue. pudesse ligá-lo a um compressor e ir bombar umas paredes. escrevinhar em todo o lado. roubar olhos. mãos. e graffitar em todo o lado. por exemplo
nesse lugar aí entre o teu peito e o teu ventre. essa parede onde o meu corpo poderia ter escorrido. deslizar um éme.
lentamente deslizar um éme. e depois com a língua buscar-te um ah! redondo, redondo, redondo,
em curvas nas curvas dos teus mamilos-
lenta
lentamente morder um érre na fronteira entre o teu desejo e
o teu sexo
e vir-me em águas
águas quentes
com as tuas águas
águas brancas e logo um
tê : ah! o meu nome bombado do nascer
ao morrer
do dia. ephemera. ephemera eternidade entre os teus braços.

mas o lugar mais efémero é onde nascemos. um mal
que carregamos connosco
como duas asas.

viajei muito de dia
correndo atrás de uma noite passada

à beira do rio
onde tu disseste
entre malas e palavras
que as asas são mãos de largar de fugir, de tocar e fugir. assim mesmo.


é. ter medo. acordar numa cama desconhecida num lugar nenhures
entre as mãos de afagar e uns olhos
grandes luminosos que dizem uma alma errante. e depois
sabemos dos segredos
insondáveis que nos escondem da morte. esses mesmo. e como
carregar as asas. como.

anda, dizes, fiz-te café. regressa aqui
a esta casa à beira de mim
e senta-te. hoje não há qualquer som que interrompa
a tua pemanência. o silêncio tem é esta importância
de pequenos goles escuros
corpo de poeira e asas de aconchegar.
é um céu. um abismo do céu à terra. há entre um homem
e uma mulher
qualquer coisa de redondo céu. uma espécie de casulo.
e é preciso dizer que nem todas as borboletas
são poeira e nem todas as casas são à beira de um lugar nenhures.


não. não interessa. é que se esta não
é a casa do medo então
aqui
poro a poro
com a humidez toda feita carne
se erguem as paredes pernas
os tectos como seios e de chãos mãos. a convulsão de uma
casa algures
exactamente no lugar onde
os teus dedos a desenham polpa a polpa
numa impressão de digital importância
e a virtualidade de
ruas. caminhas por esse lugar como quem chupa o mel
de uma mulher: sôfrego
urgente. a urgência de chegar: e entras pelo meu corpo assim
como se sorvesses o tempo
ou o roubasses a esse casulo onde a metamorfose mais lenta
acontece: no meu ventre mel o teu sémen é leite e sei que não
vou morrer se me ensanguentar dele: uma espécie de imortalidade

está toda contida aí
na ponta mais perpendicular do teu corpo. gota a gota.
e não
sei mesmo se não escondes mais algum
segredo. dizes:
meu Deus, que vocação
para o desassossego.

e eu penso que falas deste frenesim de asas
deste cio translúcido que nos fecunda
nos prolonga de horas. vá, deixa que
me emprenhe dessa multicolor vontade
dessa poeira líquida que o corpo
resgata ao céu
um teu tempo que aperto entre as coxas: o teu
é um corpo molhado
e se me encharcares eu juro que a verdadeira
metamorfose
começa agora:
eu conheço-te e senti a tua falta? não sabemos. mas escrevemos, ainda assim. regressamos a essa solidão com que esperamos merecer, imagine-se, a companhia de outra solidão. escrevemos, regressamos. não há outro caminho. não há outro caminho

cancela a minha subscrição para a ressurreição, digo também eu. com as asas no avesso da tua boca. e baby, foda-se se este não é o mal maior de todos: morrer à boca das palavras com asas de quem voa devagarinho dentro de qualquer coisa muito importante. antes mesmo de dizer.

é que
sempre me feri com a fala dos outros. por vezes ela assemelha-se muito a um estridente grasnar. não oiço.
prefiro o restolho. o restolhar. e depois encasulo-me. encasulo-me.

dizem coisas. muitas coisas. por exemplo
esta é a vida. a puta da vida. é a vida, coragem, coragem. melhores dias virão. tudo tem o seu lado positivo. pois.
a vida é a morte que a tem. digo eu.
mas eu estou doente. não estou de
perfeita sanidade.
o lugar comum dizem, como quem explica que o comum é o lugar de nós. não. a minha perfeita insanidade é circular. e abre-se de um casulo da memória do meu corpo com toda a urgência de acontecer. cancela a minha subscrição para a ressurreição se não te importas.




não tenho medo
: prefiro duas asas. entre o dia. e o fim.










rui pires cabral

prólogo de samuel beckett
ia e vinha e a cada coisa perguntava que nome tinha- sophia

memória